Um prefácio avulso - R.S.Merces



Meu relógio biológico não me deixa passar das seis da manhã durante o final de semana. Se não me bastasse acordar a semana inteira antes mesmo do sol nascer, os dias de descanso iniciam dentro de um ciclo de aborrecimentos e desgastes sentimentais. Há uma razão para esse meu hábito e o que diz sobre minha juventude nada assemelhasse. O corpo que transmite calor sobre a coberta carece de amor tanto quanto eu. O desejo que reagia sobre mim como adrenalina a partir do despertar e me conferia uma nova aventura por terras desconhecidas esvaísse mesmo que os sonhos lembrem-me da felicidade ao acordar aquele por quem eu sofro de amor até hoje. Instintivamente, eu levanto e caminho até o jardim onde fico a observar o orvalho sobre o verde e as flores pelas quais minha mãe lutara tanto contra a desistência do meu pai para cuidar. É a única parte da casa que eu consigo sentir a presença dos dois juntos, o resto caíra na modernidade e não me lembrava em nada minha infância. O sol que luta para se fixar no céu azul é seguido por uma quantidade de nuvens escuras que aos poucos deixam a água contida banhar a cidade de São Paulo no primeiro dia do ano.                                                   
      Aonde você está agora?
      Qual seria nossa opção para o primeiro dia do ano?
      Talvez com todos esses anos tivéssemos uma família com quem comemorar e cederíamos à viagem, ou simplesmente optaríamos por permanecer deitados na cama abastecidos da presença um do outro. É inevitável não pensar como seria minha vida se as escolhas fossem diferentes, entretanto as últimas palavras proferidas foram de tamanha convicção que não posso voltar a trás. Os pingos de chuva ficaram mais torrenciais e me obrigaram a entrar para a muralha escarnecida da falsidade, incongruência e muitos dos sentimentos negativos que forçam uma vida e não me é de necessidade mencionar.
      Sobre a mesa do meu escritório pousa meu aparelho celular e vejo a me perguntar se o número ainda era o mesmo, se em algum lugar alguém esperasse por uma ligação ou uma mensagem. Seria o nosso sofrimento mútuo? A chave do carro está a centímetros da minha mão e quero apanhá-la. Preciso sentir-me bem e abandonar minha família, preciso quebrar a muralha e correr sobre o passado para desfazer os passos errôneos dos meus 21 anos. Meu pai sempre disse que a felicidade humana tem seus preços, entretanto nada melhor que uma vida plena. Talvez pedir conselhos para minha mãe fosse perda de tempo, pois ela me diria o mesmo e até Gustavo, claro que mais simplificado, tentaria convencer-me da escolha já tomada. Entro no meu quatro a passos silenciosos, para não despertar o sono de quem ainda dorme tão profundamente. Tento desesperadamente encontrar uma peça casual no meio da formalidade dos ternos em maior número. Era nisso que meus dias se resumia, a ternos de trabalho. Reformara quase todo o guarda-roupa do meu pai e o trabalho parecia o prioritário, minto, é o prioritário. Encontro uma calça jeans surrada, que aparentemente diria que faz parte da réstia do meu passado e uma camisa que ganhara recentemente da minha mãe sob o propósito das comemorações natalinas. Passo nos aposentos do meu filho e deixo sobre o criado mudo a enorme caixa embrulhada em papel presentiável, bastaria ele abrir os olhos para esboçar o lindo sorriso que cultiva na face infantil. Antes de lhe dar as costas, beijo sua bochecha e desejo felicidades para o ano recém-nascido.
      Eu estou indo, e seria hipócrita se dissesse sob total segurança. Eu não sei as consequências, entretanto não saberei se permanecer com os olhos fechados.

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